Aniversário de São Paulo, Tom Zé e a FGV


Entre os muitos espetáculos preparados para a comemoração do aniversário de São Paulo, no próximo dia 25 de janeiro, um dos destaques é o show com o cantor e compositor TOM ZÉ, em três apresentações, nos dias 25, 26 e 27 de janeiro, no Sesc Vila Mariana. Os ingressos custam 6,00 (a meia entrada) e já estão à venda em todas as unidades do Sesc.

Nos consagrados versos da canção “Sampa”, Caetano Veloso diz ser Rita Lee a mais completa tradução da cidade. A roqueira compôs e continua a compor muitas letras protagonizadas por São Paulo. Mas, justiça seja feita, o artista que mais assinou composições inspiradas pela metrópole (ou megalópole, como reclama o XXI) é provavelmente Tom Zé.

Nascido na pequena Irará, no sertão baiano, e há anos morador do bairro das Perdizes,  exercendo com esmero de ourives o trabalho de jardineiro do prédio onde mora, Tom Zé é um dos mais criativos nomes da história da MPB.

Aos 25 anos, ingressou na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Em 1954, seu reitor, Edgar Santos, num gesto visionário, contratou alguns dos melhores professores de música da Europa, elevando, assim, os cursos de Música, Dança e Teatro da UFBA a um padrão de referência internacional, o que muito contribuiria para a formação de grandes artistas baianos.

Em 1968, juntamente com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Mutantes, Nara Leão, Torquato Neto e Rogério Duprat, lançou o antológico TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENCIS, o disco-manifesto do movimento tropicalista. Depois gravou meia dúzia de discos e foi praticamente esquecido pela mídia.

Em 1986, por acaso, o músico e produtor americano David Byrne, garimpando num sebo em Nova Iorque, encontrou um elepê de Tom Zé. Arrebatado pela qualidade sonora e pela riqueza das letras, Byrne decidiu resgatar o artista baiano do ostracismo (naquela época, Tom Zé estava outra vez em Irará, onde gerenciava um posto de gasolina!).

Contratado pelo selo Luaka Bop/Warner, começou a produzir outros trabalhos, teve discos antigos reeditados, lançou dvd’s, participou de filmes e ganhou o mundo, apresentando-se em vários dos mais respeitados festivais de música da Europa, bem como em consagradas casas de shows na Europa e nos Estados Unidos. Saiu no The New York Times, no Le Monde, na Rolling Stone. No Brasil, realizou várias turnês e recebeu o reconhecimento definitivo de público e mídia. Tom Zé mundializado!

Em 2003, a convite da Publifolha, lançou o livro TROPICALISTA LENTA LUTA (título estranho e de afinada cadência latina). A obra divide-se em três partes: setenta páginas de material inédito, mais setenta de “textos recolhidos” (uma compilação de valiosos artigos que ele havia dispersado por várias publicações nos anos 80 e 90) e mais as letras de todas as suas composições (na edição de 2009, a mais atualizada do livro).

A originalidade das ideias, o valor documental e testemunhal fazem do livro  uma leitura obrigatória. Some-se ainda o estilo saboroso, no qual ele se apropria da geleia geral tropicalista, bebe na antropofagia oswaldiana e se reveste do barroco glauber-rochiano. Tudo isso para fazer a ponte entre o popular e o erudito, a oralidade e o dodecafonismo, o sertão e a megalópole, o arcaico e o pós-moderno.

 

TOM ZÉ E A FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

Em meio ao caleidoscópico número de eventos que cercaram o ressurgimento do artista, relembremos o álbum JOGOS DE ARMAR.

 

O repertório desse disco foi apresentado originalmente num show do teatro da FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, em 1978, quando este era um referencial de eventos musicais, teatrais e cinematográficos em São Paulo. Aquele conjunto de composições foi “o embrião de células musicais que podem ser manejadas, remontadas: um tipo de canção-módulo, aberta a inúmeras versões, receptiva à interferência de amadores ou profissionais (…)”.

Em 2000, a gravadora Trama finalmente lançou esse trabalho, amadurecido e reelaborado ao longo de mais de vinte anos. O resultado é um álbum sobre o qual qualquer adjetivação se torna inócua. Inventividade a pulsar em cada nota, cada arranjo e cada letra.

JOGOS DE ARMAR encerra releituras originais de clássicos da música nordestina (“Pisa na Fulô, “Asa Branca”), convites irresistíveis à dança (“Chamegá”, “Conto de Fraldas”), letras atônitas de criatividade e humor (“O PIB da PIB – Prostituir”, “A Chegada de Raul Seixas e Lampião no FMI”) e fusões rítmicas deliciosas, como em “Chamegá”, na qual se cruzam elementos do rock, do samba e do funk. É um disco que vale a pena ser ouvido com cuidado.

Entre os cerca de 25 álbuns de Tom Zé, merecem destaque também ESTUDANDO O SAMBA (1976), COM DEFEITO DE FABRICAÇÃO (1998), ESTUDANDO O PAGODE, SEGREGAMULHER E AMOR (2005), ESTUDANDO A BOSSA (2008) e, claro, TROPICALIA OU PANIS ET CIRCENCIS (1968).

 

TOM ZÉ MEMORIALISTA

Para se ter uma pequena ideia da genialidade desse sertanejo cosmopolita e do caráter magnético de sua escrita, leia um fragmento de TROPICALISTA LENTA LUTA, no qual ele evoca o tempo de suas primeiras criações:

PECADO PECADO

“Para fazer uma avaliação, eu ia mostrando a amigos, público a retalho, para experimentar o “acordo” e principalmente para verificar se havia capacidade de comunicação naquela forma fugidia que eu queria chamar de cantiga.

No começo me deram sinais indefinidos, vagos. No correr dos dias começaram a pedir uma cantiga ou outra. Nenhum comentário. Às vezes um ambiente tenso. Mas voltavam na tarde seguinte. O grupo foi aumentando. Já havia riso. Mas um riso nervoso como uma contravenção.

Coincidia com o meu sentimento, e me mostrou que o pecado não era só meu, ao compor a cantiga, mas de todos, pela cumplicidade de simplesmente ouvir e desfrutar, com um contentamento que aumentava a cada audição. Quando demos por nós, aqueles encontros já eram uma alegria prazerosa e instituída. Um coração em festa. Tal que, em nosso repertório de signos, só uma menina nua podia significar em comparável graça o prazer daquelas tardes.

Dega, Zé Nilton, Pedro Cem, os mais chegados, eu chamava para parceiros, quando estava sozinho. Eles vacilavam, nunca tinham pensado em fazer música na vida. Acabavam aceitando mais por amizade e companheirismo.

Nas audições de grupo, recorrente ao prazer, o medo. Um medo xixi que, não se respeitando, pensava tolices: será que depois de entrar nas cantigas, a pessoa poderia sair, voltando ao seu dia-a-dia? Ou as cantigas fariam delas o que sempre fizeram com suas personagens? Pois fora sempre essa, a fatalidade: nunca se viu uma vida saindo da canção para voltar ao tempo de um trivial viver. Nessa lógica, podia ser que nosso canto aprisionasse a todos numa vida de cantiga, no enredo da música. De repente, estando a razão distraída, um olhar se cruzava com outro, embaçado pelo mesmo medo encantatório, e corria no clarão dos dois olhares um tremor, ignição confessada do compartilhado crime.

E nós, ali, colhendo a cidade como fruta. Oh, meu Deus! Eram apenas gozos recuperados. Nós, meninos do interior, diante de um brinquedo gostoso. Não era música, era vida. Uma ocupação muito intensa de um pedaço do dia. Uma ocupação saturada. Camadas de prazer superpostas nos mesmos minutos.

Não sobrava no tempo daqueles instantes nem um microespaço para o tédio tão comum nas cidades do interior. Tudo era intensa vida, generosa vida, tátil vida: o próprio pecado.”

                    Tom Zé, TROPICALISTA LENTA LUTA. São Paulo, Publifolha, 2009, pp. 26-27)

 

 

 

LIVROS SOBRE TOM ZÉ

1.     TOM ZÉ, vários organizadores, Editora Azougue

2.     ESTAÇÃO BRASIL: CONVERSAS COM MÚSICOS BRASILEIROS, de Violeta Weinschelbaum, Editora 34 (pp. 105-122)

ENTREVISTA COM TOM ZÉ

No site sesc.org.br, pode ser localizado o evento PROJETO ILUSTRE LEITOR, realizado em 14.09.11, na unidade Bom Retiro.

Ao longo de uma hora e meia de entrevista, o convidado é Tom Zé discorreu sobre seus livros de cabeceira, como OS SERTÕES, de Euclides da Cunha, e A MONTANHA MÁGICA, de Thomas Mann.

Tom Zé memorialista, literário-leitor-letrista, músico. E Tom Zé no palco, performático, com quase oitenta anos, ajoelhando-se em reverência ao público e à música, plantando bananeira, ou homenageando as conquistas do feminismo, ou brincando com as antigas rivalidades entre as meninas da USP e as da FGV, vestido de minissaia e meia arrastão! Não é música, é vida!

 

Professor Verô

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