O som ao redor


Para ser visto agora. Sem qualquer julgamento passional, um dos melhores filmes do cinema nacional em meio à minguada produção dos últimos anos. CIDADE DE MUROS é um livro de referência sobre a segregação social na cidade de São Paulo. Escrito por Teresa Pires do Rio Caldeira, professora do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, a obra é uma análise sobre o aumento visível da violência em São Paulo nos últimos anos  e a criação de formas inéditas de discriminação social.

Segregação, desrespeito aos direitos dos cidadãos, crime organizado e falência das instituições públicas são realidades onipresentes em megalópoles como Rio e São Paulo. E que atingem hoje também outras metrópoles brasileiras em ritmo acelerado.

 

  O SOM AO REDOR é a anatomia de uma rua de classe média no bairro da Boa Viagem, no Recife, onde, aliás, reside o próprio diretor do filme e também crítico de cinema Kleber Mendonça Filho. Antes de dirigir seu primeiro longa, O SOM AO REDOR, Kleber havia rodado dois curtas: ELETRODOMÉSTICA e RECIFE FRIO (este último, lançado em dvd, está esgotado); ambos podem ser vistos na internet e é recomendável vê-los antes de assistir ao longa, pois há um diálogo entre os três).

A violência e o medo são temas  recorrentes na cinematografia brasileira das duas últimas décadas. CARANDIRU, CIDADE DE DEUS, O PRISIONEIRO DA GRADE DE FERRO,  as TROPAS DE ELITE, além dos essenciais filmes de Sérgio Bianchi – CRONICAMENTE INVIÁVEL, QUANTO VALE OU É POR QUILO? e OS INQUILINOS – são alguns desses títulos.

Esses filmes, apesar das diferenças de enfoque, aproximam-se na medida em que tendem a discutir a segregação, o crime e o medo a partir, sobretudo, dos extremos: as elites e os pobres ou miseráveis, a zona sul paulistana ou carioca e a periferia esquecida. Um dos aspectos originais de O SOM AO REDOR está em mostrar a segregação social e seus desdobramentos a partir dos espaços público e privado da classe média, numa rua onde todos tentam se proteger atrás de grades, portões, câmeras, ao mesmo tempo em que lançam mão de rádios e celulares.

Como os sistemas individuais de proteção vão se tornando inócuos diante do crescimento dos assaltos, os moradores resolvem aceitar os serviços de uma empresa particular de segurança. E aqui o filme instala outras tensões.

A essa altura já conhecemos Dinho, o playboy que estoura vidros de carros para roubar aparelhos de som. A empressa contratada está proibida, no entanto, de tomar qualquer medida em relação ao adolescente. Por quê? Motivo simples: seu avô, velho senhor de engenho, é proprietário da maior parte dos imóveis da rua.

Com sutileza, o diretor dilata a espiral do tema. Diferenças sociais e autoritarismo, modernização da metrópole e conservação do substrato colonial se ligam numa ponte temporal entre o patriarcalismo escravocrata da sociedade açucareira e o empreendorismo imobiliário na cidade em crescimento vertiginoso. O filho do antigo senhor é, afinal de contas, um corretor de imóveis.

Em paralelo ao movimento das três  gerações (o antigo senhor, o corretor e o playboy), acompanhamos  o cotidiano de outros moradores ou serviçais da rua. Uma família classe média cujos filhos estudam inglês e chinês (enquanto a mãe se vale do aspirador de pó para sugar a fumaça do cigarro de maconha que fuma escondida), uma mulher à procura de um imóvel para locar (e assustada pelo recente suicídio de uma moça no prédio em que fora visitar um apartamento), os empregados (serviçais tratados com bondade desde que mantenham a velada distância em relação aos patrões), os “olhadores” de carros estacionados, o pirralho que filma no celular o sono do zelador,  a condômina indignada com o mesmo zelador que (talvez um justo motivo para sua demissão) entregou-lhe a Veja fora do plástico…

Todos circulando pela rua, enquanto ouvimos o ruído dos portões, as chamadas de rádio, o estalido das fechaduras. Em suma, os sons ao redor, ora secos, ora estridentes. E quando percebemos, nós, agora espectadores-moradores-de-Boa-Viagem (mais a ironia que o nome invountariamente agregou) nos vemos instalados numa rua de Medo maiúsculo.

Reconhecemos, então, outro acerto do diretor. Ao contrário de tantos filmes centrados na desigualdade e na violência, aqui não há imagens de perseguição, espancamento, sangue ou assassinatos. A violência não é fotografada em sua crueza convencional e óbvia. Ela paira, no entanto, latente, na rua, nas casas, nos apartamentos, em nossos corações e mentes. Não a vemos. Sentimo-la, pulsando, intensa, em cada imagem, cada som e cada um dos cento e trinta e um minutos do filme. Enquanto isso, aguardamos e tentamos acreditar nos muros, nas grades, nos seguranças, nos celulares.

ATENÇÃO: estão disponíveis no ACERVO DO CPV para empréstimo os títulos: CIDADE DE DEUSCRONICAMENTE INVIÁVEL e QUANTO VALE OU É POR QUILO?

Em época de superproduções concebidas sob medida para disputar o Oscar (mais do mesmo), vale a pena ver o que está ao nosso redor e que, por cutucar a realidade com vara curta e apostar na originalidade e na qualidade, não concorre a prêmios em Hollywood nem tem espaço para ser exibido em salas com susperpoltranas com apoio para o champagne.

PROFESSOR CÉSAR VERONESE (CPV) 

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