Antunes Filho em dose dupla
Em 2013 o Grupo de Teatro Macunaíma completou 35 anos, sendo dirigido, desde sua criação, por Antunes Filho, um dos maiores diretores de teatro em atividade no mundo. A história do grupo se confunde com a do CPT (Centro de Pesquisa Teatral) do Sesc, que também completa três décadas.
Antunes Filho pertence à geração que produziu outros gigantes do teatro brasileiro, como Augusto Boal e José Celso Martinez Correia. Esses diretores surgiram na cena brasileira há mais de meio século e foram responsáveis pela invenção de uma linguagem para o teatro brasileiro. Até então o que se fazia por aqui era a exploração de técnicas de interpretação e encenação do teatro europeu.
A revolução veio, não à toa, em 1964, quando Antunes realizou a montagem de VEREDA DA SALVAÇÃO, de Jorge Andrade. Segundo Sebastião Milaré, Antunes Filho cercou-se de um elenco de grandes atores e “lhes fez ver a impossibilidade de representar aqueles lavradores sofridos com as posturas e as projeções vocais vigentes. Então, pela primeira vez no teatro brasileiro, realizaram-se ‘laboratórios’, onde os atores quebravam defesas físicas, psíquicas e culturais, limpavam-se de condicionamentos para viver o ‘outro’ “. Nascia aí um trabalho de pesquisa sério que mais tarde se organizaria em torno do CPT.
Ao longo dessas três décadas o Macunaíma rodou o Brasil e os cinco continentes, apresentando-se em países tão diferentes como Colômbia, Canadá, Grécia, Israel e China. Acolhido pelo SESC, o CPT tornou-se uma referência mundial de pesquisa teatral, realizando um diálogo riquíssimo com o que se produz de melhor no teatro internacional. Assim, o público paulistano tem sido presenteado esporadicamente com extraordinárias montagens de grupos franceses, italianos, latino-americanos, russos e japoneses, para citar apenas alguns.
Agora, na abertura da temporada teatral de 2014, o Macunaíma leva ao palco do SESC Anchieta dois espetáculos dirigidos por Antunes Filho: TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA, de Nelson Rodrigues (em fechamento da temporada de 2013) e NOSSA CIDADE, de Thorton Wilder (que estreou em outubro de 2013). Dois textos que à distância podem parecer muito diferentes, mas que, aproximados, talvez possam revelar aspectos comuns, como o universal que salta das pequenas vidas anônimas, tanto no espaço de uma metrópole como o Rio de Janeiro como de uma cidadezinha fictícia capaz de alegorizar os Estados Unidos.
TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA é uma tragédia carioca com os típicos ingredientes rodrigueanos: conflitos familiares, paixões exacerbadas, transgressões sexuais, ameaças que prenunciam homicídios e/ou suicídios, súbitos desaparecimentos, dramas psicológicos.
O enredo se organiza em torno de um homem que acabou de enviuvar e se torna responsável pela guarda do filho. Este, por sua vez, exige um juramento do pai prometendo, em nome da mãe (que acredita onipresente na casa), de que nunca mais irá se casar com outra mulher. O irmão do jovem viúvo, no entanto, apresenta-lhe Geni, uma prostituta irresistível obcecada pela ideia de que irá morrer de câncer no seio. Nesse momento, as vidas do viúvo, da meretriz e do filho se cruzam e o conservadorismo de uma típica família de classe média carioca se choca com a homossexualidade e sentimentos intensos de amor, traição e vingança.
NOSSA CIDADE (OUR TOWN) é um texto de 1938 do dramaturgo norte-americano Thorton Wilder. Ambientada na pequena cidade imaginária de Grover’s Corners, a peça é um retrato da classe média, cristalizada em seu conservadorismo. Os quatro mil habitantes da aldeia são cidadãos comuns, cujos sonhos, ilusões, decepções e trivialidades poderiam ser encontrados também em qualquer metrópole da América. Por isso o autor faz os personagens repetirem o tempo todo palavras como “centenas’, “milhares” e “milhões”, fazendo a aldeia extrapolar para vastas dimensões o tempo e o espaço.
Do cotidiano banal (preenchido pelo calendário das festas e óbitos familiares) às tragédias nacionais (como as onipresentes guerras em que os Estados Unidos estiveram e continuam a estar envolvidos) os seres de Grover’s Corners revelam-sem antes de tudo humanos. Essa é, aliás, uma ideia que orientou não só a obra mas também a vida de Thorton Wilder: “Nós somos todos pessoas, antes de nós sermos qualquer outra coisa. Pessoas, mesmo antes de nós sermos artistas. O papel de ser uma pessoa é suficiente para nós vivermos e morrermos por ele”.
TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA
ONDE: Sesc Consolação. Rua Doutor Vila Nova, 245 – Vila Buarque
QUANDO: até 27 de março, às quintas feiras, às 21h00
QUANTO: de 6,00 a 30,00
NOSSA CIDADE
ONDE: Sesc Consolação. Rua Doutor Vila Nova, 245 – Vila Buarque
QUANDO: até 30 de março de 2014, sextas e sábados, às 21h00, e domingos, às 18h00
QUANTO: de 6,00 a 30,00
Para quem se interessa por Nelson Rodrigues, o Teatro do Pequeno Gesto (RJ), em seu louvável projeto de resgate da memória da cultura brasileira, publicou no ano passado uma excelente compilação de textos raros sobre o autor. São dezenas de textos, escritos entre 1942 e 2009, e que se encontravam dispersos em muitos jornais, revistas e outras publicações. A compilação, que tem o mérito de reunir artigos de opiniões díspares sobre o dramaturgo, é Revista Folhetim. Especial Nelson Rodrigues (Editora Pão e Rosas). Essa publicação não é comercializada em São Paulo. Pode ser encontrada no Teatro do Gesto (RJ) ou pedida por reembolso postal para a Livraria Leonardo da Vinci, também no Rio de Janeiro.
Enquanto Claudia Raia exibe suas pernas asseguradas em alguns milhões de dólares (segundo revelações feitas por ela mesma) e reivindica o fim da meia entrada porque isso gera prejuízo para os seus espetáculos (embora os preços oscilem em torno de 200,00), vale a pena conferir uma dramaturgia capaz de explorar o talento de atores de verdade.
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