BRASIL: UMA BIOGRAFIA
O personagem é complexo, contraditório e se recusa a ser apreendido. Para a História é jovem, embora já tenha uma longevidade que ultrapassa cinco séculos. BRASIL, UMA BIOGRAFIA, de Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, é uma investigação que começa com o descobrimento do país e chega às manifestações de rua de março de 2015.
A obra não chega a ser uma interpretação do Brasil ao modo dos ensaios clássicos de Buarque, Freyre, Caio Prado ou Faoro. Como o título sintetiza, é uma biografia e como tal se prende aos fatos históricos que fizeram o país. Uma história escrita pelas figuras públicas e pelos anônimos, embora estes sejam quase sempre propositalmente negligenciados pela versão oficial. A espinha dorsal dessa história é, como sabemos, a escravidão, embora ela seja insuficiente para explicar os caminhos e descaminhos pelos quais o país enveredou.
Da colonização (eufemismo que deveria ser substituído por invasão) ao voto livre para a escolha de nossos representantes em todas as instâncias políticas após a ditadura militar, o Brasil se fez a ferro e fogo, autoritarismo e exploração, preconceito e discriminação: execuções, servidão econômica à Metrópole, negação dos direitos humanos. Uma economia, segundo a tese de Caio Prado, fundada em ciclos (pau-brasil, açúcar, ouro, café), um povo marcado pela mestiçagem (positiva ou negativa, conforme os diferentes teóricos) e uma política erigida no compadrio que faz dos interesses privados a pauta da agenda pública.
Colhendo dados de cronistas e historiadores, arrolando as teses clássicas de interpretação do país, e os movimentos da cultura, que se estendem das impressões dos primeiros viajantes, passam pela literatura brasileira e chegam à Bossa Nova, ao Cinema Novo e ao rap, as autoras não ambicionam fazer uma interpretação original do país, mas elencar as múltiplas faces que o compõem. Elegeram o Brasil como personagem localizado no tempo e no espaço mas sabem que, gato escaldado, ele recusa a docilidade e pode saltar para fora da roda.
Se por um lado o discurso do historiador deve se pautar pelos fatos, testemunhos e dados estatísticos, por outro as manifestações artísticas podem preencher as entrelinhas e aclarar as coordenadas maiores. Assim, por exemplo, a célebre passagem de ESAÚ E JACÓ, de Machado de Assis, sobre as hesitações do proprietário de uma confeitaria a respeito da pintura da nova placa do seu estabelecimento comercial, são ironicamente ilustrativas de como a República deu continuidade à política da Monarquia. Partido Liberal e Partido Conservador encenavam seu teatro no palco da grande propriedade rural e se valiam das ideias iluministas apenas como roupagem para discursar na tribuna. Nas décadas de 1930 e 1940, várias marchinhas carnavalescas se encarregaram de fazer a crônica dos problemas da capital federal, bem como a denúncia da ditadura Vargas. Só em 1942, por exemplo, o DIP “proibiu 373 canções e 108 programas de rádio”.
O mérito maior de BRASIL: UMA BIOGRAFIA talvez esteja no arrolamento – feito com o mais rigoroso critério acadêmico e numa linguagem acessível ao grande público – dos fatos mais importantes de nossa história, ao mesmo tempo em que recupera outros dados convenientemente ignorados pela historiografia oficial, sempre autoritária e machista. Desse modo, ficamos sabendo que quando Vargas chegou ao poder, não foram apenas as disposições do novo Código Eleitoral que, entre outras conquistas, garantiram o direito de voto às mulheres. Estas se fizeram notar também por meio de um movimento armado que lutou em favor dos getulistas. Era o Batalhão Feminino João Pessoa, organizado em 1930 por uma advogada mineira de 23 anos, Elvira Komel, e que reuniu “cerca de 8 mil mulheres distribuídas por 52 cidades”.
Outro aspecto relevante da obra é a síntese que não despreza complexas conjunturas econômicas e políticas para esclarecer acontecimentos igualmente complexos como a Guerra do Paraguai, o governo Vargas, a criação da Novacap por JK como uma empresa paralela para driblar os trâmites burocráticos e conseguir erguer Brasília em tempo recorde, a inacreditável fanfarronada do general Olympio Mourão que, com uma logística capenga, conseguiu converter-se em força decisiva para a queda de Jango. Ou então o jogo de negaceios onipresente na formação de partidos e alianças políticas, suas gangorras, conchavos, quase-mortes e ressurreições, momentos de fervura e raspas de fundo de tachos, todos oferecidos ao gosto do freguês: Partido Liberal, Partido Conservador, UDN, Integralistas, Partido Comunista, ARENA, MDB, PTB, PMDB, PT, PFL, dinâmica que, no final das contas, constituem o substrato da política em qualquer época e sociedade.
Por outro lado, as autoras não deixam de lado algumas saborosas curiosidades que ajudam a esclarecer os fatos. Assim, por exemplo, ficamos sabendo que Leblon era um topônimo que originalmente designava um quilombo no Rio de Janeiro e cujos escravos fugidos cultivavam e comercializavam flores, especialmente a camélia branca, muito rara no Brasil da época. Como poucos negros gozavam de liberdade, a flor passou a ser associada aos abolicionistas, que costumavam portá-la na lapela, atitude que logo ganhou outros adeptos e, por extensão, se tornou também um símbolo das reivindicações pelo republicanismo.
Embora seja compreensível a busca de um equilíbrio quanto ao número de páginas dispensado para cada período de nossa história, o livro deixa o leitor ligeiramente decepcionado nas incursões pelos movimentos culturais. Os argumentos sobre a Bossa Nova, o cinema nacional e o papel da malandragem em diversas épocas são excelentes. Caberia, porém, uma breve análise sobre o significativo conjunto de grandes arquitetos brasileiros (como Rino Levi, Affonso Reidy, Vital Brazil, Vilanova Artigas, entre outros), bem como um comentário mais alentado sobre a Tropicália, à qual as autoras dispensam apenas oito linhas (p. 466).
No que tange aos dados relativos à cultura, podem ser apontadas uma ou outra informação imprecisa (de resto compreensível numa obra de tão largo fôlego, mas que poderiam ser corrigidas nas próximas reimpressões do texto). MACUNAÍMA é apresentado como “romance” (p. 339), quando a classificação correta – e essencial para a compreensão da estrutura do livro – é rapsódia. Aliás, o próprio Mário de Andrade a princípio o denominou romance. Refletindo, ainda antes da publicação, resolveu designá-lo rapsódia, o que faz muito mais sentido, como está analisado no melhor ensaio já publicado sobre o livro, o hoje clássico O TUPI E O ALAÚDE, de Gilda de Mello e Souza. As autoras também informam que Noel Rosa compôs “cerca de trezentas composições” (p.376). Noel escreveu, na verdade, 229 composições.
No cômputo geral, BRASIL: UMA BIOGRAFIA expõe com clareza, didatismo e abalizada pesquisa a história de um país dilapidado pelo colonizador, dominado por suas elites econômicas e marcado pela corrupção e pelas contradições. Um país localizado num continente de vocação republicana e que adotou após a independência o regime monárquico. Um país cuja boa parte da intelectualidade (como o comprova o cânone da literatura brasileira) frequentemente assumiu o discurso da Metrópole ou das elites locais. Um país que percorreu um longo caminho para poder concretizar uma série de direitos ao seu povo. Foi longo, por exemplo, o percurso das ideias positivistas: quase um século de amadurecimento até levarem Vargas ao poder, um presidente civil que se tornou ditador, que tentou calar os comunistas não obstante tenha garantido ao povo importantes direitos políticos e trabalhistas, e que, tenho simpatizado com o fascismo, enviou o exército brasileiro à Itália para lutar contra Mussolini e Hitler.
Na história mais recente, é comovedor deparar-se com a trajetória de um menino que se deslocou, num pau de arara, com sete irmãos e uma mãe analfabeta, do sertão pernambucano para São Paulo e chegou ao Palácio do Planalto por meio do voto livre e democrático. Por outro lado, é lamentável ver o partido político que levou Lula à Presidência envolvido em tantos escândalos de lavagem de dinheiro. Não menos escandalosas foram as denúncias sobre a compra de votos para garantir a reeleição de FHC, um respeitado intelectual uspiano.
No fogo cruzado dos problemas crônicos de nossa história, deparamo-nos, no final das contas, como constatam as autoras, com um saldo positivo: a construção da cidadania. Não vivemos mais sob uma ditadura, o povo parece não mais se deixar enganar por grosseiras mentiras políticas e quer saber a destinação do dinheiro público. Há muito ainda a conquistar, como a revisão da Lei da Anistia, uma perda recente da sociedade civil, que viu desperdiçada uma oportunidade de punir os criminosos da ditadura. Mas esse é o diapasão da democracia, que se faz com avanços e recuos, conquistas e contestações, liberdade e reivindicação.
Prof. César Veronese (CPV Vestibulares)
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